O nome dela era Alegria...
- Marina Duque
- 17 de out. de 2019
- 7 min de leitura
O nome dela era Alegria.
A Alegria era doce e ingénua e não reconhecia maldade no mundo à sua volta. A Alegria era uma criança como todas as outras: cheia de energia e só queria divertir-se, ser feliz e ser amada. A Alegria só queria sentir-se segura no seu mundo fantástico, repleto de magia tal como nos contos de fadas. Na verdade era assim que ela via o mundo, como um conto de fadas. Não que ela se parecesse com uma princesa. A Alegria era mais aquele estilo de criança que andava sempre com o cabelo todo emaranhado, só queria correr livre pela rua fora, sujar-se na lama, comer com as mãos e aparecer ao pé da mãe com a boca toda lambuzada de chocolate ou gelado. A Alegria era simples e fazê-la feliz era ainda mais simples.
Mas a Alegria percebeu que muitas das pessoas à sua volta não gostavam da Alegria. Ralhavam com a Alegria! Zangavam-se quando a Alegria batia palminhas de tão entusiasmada que estava e ela entusiasmava-se com tudo. Ela levava o seu entusiasmo para todo o lado. Não podia ser! A vida não podia ser sempre tão livre, tão autêntica e tão genuína. A Alegria não podia manifestar-se de qualquer forma e em qualquer lugar. A Alegria precisava de regras. A Alegria precisava de se conter. E a Alegria ficava triste. Ela só queria que gostassem dela, que a amassem e que a fizessem sentir segura, mas começou a perceber que se continuasse a ser como era, as pessoas deixavam de gostar dela, ficavam zangadas com ela, afastavam-se dela e preferiam estar com outras pessoas que não ela. E a Alegria não gostava de estar sozinha. A Alegria tinha medo de estar sozinha, então, tomou uma decisão: a Alegria passou a chamar-se Tristeza.
A Tristeza deixou de dar gargalhadas, deixou de correr pela vida como se todas as estradas fossem arco-íris, deixou de se lambuzar com doces e passou a ser uma menina bem comportada. A Tristeza só falava quando lhe davam autorização, comia com faca e garfo, tinha uma postura composta à mesa e aprendeu a observar as pessoas para perceber, afinal de contas, como é que se devia comportar. A Tristeza era determinada e esperta por isso aprendeu depressa. Só havia uma coisa que de vez em quando a atraiçoava: o entusiasmo. O entusiasmo lembrava à Tristeza de como era a Alegria, mas ela já não era mais essa menina endiabrada e não podia voltar a ser por isso, agarrou no entusiasmo, enfiou-o numa caixa de sapatos velha e guardou-a bem no fundo do armário no seu quarto. Uma vez por outra, à noite, quando já todos estavam a dormir, a Tristeza espreitava para dentro da caixa e deixava sair o entusiasmo. Era só por um bocadinho, mas naquele bocadinho ela voltava a ser Alegria e recordava com saudade os tempos em que corria livremente pelo mundo dos sonhos, onde ela acreditava que tudo era possível.
Com o passar do tempo, a Tristeza foi deixando de espreitar para dentro da caixa do entusiasmo. Cada vez que o fazia, quando tinha que voltar a fechar a caixa e a guardá-la, ficava a sentir-se vazia, como se tivesse acabado de guardar uma parte dela. E de cada vez que guardava a caixa, parecia que guardava partes diferentes dela. A Tristeza não gostava da sensação e acabou por abandonar de vez o entusiasmo no fundo do seu armário. Em vez disso, dedicou-se às pessoas, a perceber como elas agiam, como elas se movimentavam, como elas pensavam. A Tristeza estava determinada a conquistar o seu lugar nesse mundo que para ela era tão estranho, mas onde ela precisava viver. E sabia que para isso precisava parecer-se mais com as outras pessoas com quem tinha que o partilhar, então à noite, em vez de espreitar o entusiasmo, decidiu aprender a costurar. Ela não gostava mas, teimosa, aprendeu. Todas as noites a Tristeza pegava na agulha, no dedal e na linha e ia juntando os pedaços de tecido que durante o dia retirava das pessoas em que tocava. Levou muito tempo porque ela não sabia costurar bem e quando se picava doía e sangrava. Ela chorava muitas vezes: umas por frustração, outras pela dor, outras pelas duas coisas. A Tristeza passava tanto tempo a costurar de noite que de manhã estava exausta e aos poucos começou a perder a visão, começou a perder a cor, começou a perder o brilho... mas chegou o dia em que a sua capa estava feita. Sim, esta tinha sido a sua grande ideia: construir uma capa gigante a partir de tudo o que considerava que podia fazer os outros felizes e que eles queriam ver nela.
No dia seguinte a Tristeza saiu à rua com a sua super capa, como um super-herói, perfeitamente convencida de que ia conquistar o mundo. Mas a Tristeza percebeu que ninguém a via! Ela tentava interagir com as pessoas, falar com as pessoas, mas elas não a viam, nem a ouviam. A Tristeza deixou-se cair no chão e chorou convulsivamente. Afinal todo aquele trabalho tinha sido em vão! Pior, a Tristeza estava doente por ter trabalhado tanto. Sentia-se fraca, cansada, com frio e devia ter muita febre porque sentia-se a começar a delirar. Arrastou-se com muita dificuldade até casa, atirou a sua capa para o canto do quarto e enfiou-se na cama. Mal se deitou adormeceu. Mal adormeceu começou a sonhar. Estava num campo com relva a perder de vista e com a sua capa vestida. O céu era azul claro e tinha nuvens altas em forma de algodão doce, chocolate e havia uma que ela podia jurar que era um cone de gelado. À sua volta haviam árvores altas e flores exóticas de todas as cores. À volta dessas flores voavam borboletas com todas as cores de um arco-íris. Um bocadinho mais à frente percebeu que havia um riacho. Aproximou-se para beber água e a água era tão clara que dava para ver as pedras verdes e acastanhadas no fundo. Haviam peixinhos vermelhos a nadar e passou-lhe pela cabeça como eles deviam ser felizes ali a nadar livremente naquela água tão límpida. Nesse preciso momento um dos peixinhos deu um salto fazendo aparecer várias circunferências na água o que chamou a sua atenção. A Tristeza podia jurar que havia alguma coisa ali. Olhou com mais atenção e agarrou-se bem à margem para não cair. Noutros tempos ter-se-ia atirado de cabeça para dentro do riacho e teria nadado, curiosa e tão livremente quanto os peixinhos que por lá andavam, à procura de um qualquer tesouro por ali escondido. Mas mesmo nos seus sonhos já não era a Alegria e já nem se lembrava de como era ser. No momento em que se inclinou para ver melhor, sentiu a força de uma mão nas suas costas a empurrá-la e caiu dentro da água. De repente a água já não era clara e já não via o fundo. A água estava gelada, turva e escura e a Tristeza estava a afogar-se. Naquele momento, num milésimo de segundo, a sua vida toda passou-lhe pela cabeça. Recordou-se de quando era Alegria, de quando corria e era livre. Recordou-se de quando brincava com o entusiasmo e se lambuzava com a vida. Recordou quando dançava com as estrelas e adormecia a acreditar que a lua tinha olhos, nariz e lhe sorria mesmo antes de ela fechar os olhos para dormir. Recordou-se de quando acreditava que tudo era possível e que havia uma qualquer magia que fazia os sonhos tornarem-se realidade. Mas o que a fez despertar do torpor em que se encontrava foi aquela memória longínqua daquela caixa de sapatos enfiada no fundo do seu armário. Abriu os olhos e a poucos metros de si estava uma caixa de sapatos exactamente igual à sua. Nesse momento a Tristeza teve que fazer uma escolha demasiado difícil: ou a Tristeza se libertava da sua capa de pessoas e usava as suas últimas forças para alcançar a caixa de sapatos, na esperança que o entusiasmo estivesse lá dentro e a levasse de volta à superfície; ou a Tristeza morria. A Tristeza não queria morrer e num ato quase instintivo libertou-se da sua capa e começou nadar em direcção à caixa de sapatos. Ao contrário do que ela esperava, a cada braçada que dava, sentia-se mais leve, sentia-se mais livre e menos cansada. À medida que ia avançando a água ficava mais clara, menos turva e os peixes vermelhos começavam a juntar-se à sua volta, nadando ao seu lado e a dada altura quase que se sentiu um deles. Quando chegou à caixa de sapatos estava exactamente onde tinha caído e a água era novamente límpida e morna. Assim que abriu a caixa, sentiu os seus pés a tocarem nas pedras do fundo do riacho e quando se ergueu a água dava-lhe pela cintura. A Tristeza estava tão feliz por voltar a ver o entusiasmo que soltou um grito e começou a bater palmas. Naquele momento a Tristeza já não era mais Tristeza. A Tristeza tinha voltado a ser Alegria.
Acordou em sobressalto na sua cama. Ainda atordoada por tudo o que lhe tinha acontecido no mundo dos sonhos, saltou da cama e correu para o armário à procura do entusiasmo. A caixa não estava lá e o lugar onde havia estado estava vazio. Era de noite e estava escuro. Procurou melhor. Nada! A Alegria caiu sobre os seus joelhos e chorou com tanta força que soluçava. Entre lágrimas olhou pela janela e viu a Lua. Parecia que estava diferente. Acalmou o choro e limpou as lágrimas. Viu uns olhinhos pequenos começarem a formar-se e um nariz pequenino, em forma de batata na ponta. A Alegria pensou que ainda estava a sonhar. Esfregou os olhos e quando voltou a abri-los, a Lua tinha acordado e acabava de esboçar um sorriso, com uma boca minúscula que entretanto tinha aparecido. A Lua aproximou-se da janela da Alegria e disse-lhe:
- "Não tenhas medo pequenina, ele não desapareceu. Eu guardei-o dentro de ti enquanto estavas a dormir para que nunca o percas. Mas tens de me prometer que nunca mais abdicas dele. Se o voltares a fazer, se voltares a desistir de ser Alegria, eu venho buscá-lo e entrego-o a outro menino que cuide bem dele. Sabes Alegria, é que o entusiasmo tem que ser cuidado e protegido, se não morre como tu ias morrendo quando tentaste ser Tristeza".
A Alegria confusa disse à lua:
- "Mas eu nunca quis abandonar o entusiasmo. Eu só queria ser como as outras pessoas e ele não me deixava. Quando as pessoas me viam com o entusiasmo não gostavam de mim e eu queria muito que gostassem."
A Lua com os seus olhos redondos e brilhantes respondeu:
-"Minha querida Alegria, o entusiasmo serve precisamente para não deixar as pessoas serem Tristeza, mas é preciso ser muito forte e corajoso para não ser Tristeza. Quando to dei, mesmo antes de nasceres, foi para que o distribuísses por todas as pessoas do mundo como um presente. Nem todos vão aceitar esse presente, muitos vão até olhar para ele como uma maçã envenenada, mas o teu trabalho não é fazer essa escolha. Tu só tens que o cuidar, que o proteger e que o carregar sempre dentro do teu coração. Só assim poderás ser Alegria. Só assim poderás brilhar como eu brilho todas as noites.
Lentamente, a boca desapareceu, o nariz desvaneceu-se, os olhos fecharam-se. A Lua aconchegou-se nas estrelas e voltou a adormecer. ☽

Obrigada Sandra Chilra pela inspiração! ♥
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