top of page
Buscar

Fala-me de Um Dia Perfeito - O Filme

Tenho que começar por confessar que demorei alguns dias a digerir este filme. Comecei a vê-lo numa tarde de Domingo em que só queria qualquer coisa leve, assim ao estilo pastilha elástica, e aquilo que parecia ser mais uma daquelas tretas adolescentes, acabou comigo lavada em lágrimas a ter que processar o que é que tinha acontecido ali.


Não vou desenvolver muito a história porque quero mesmo que vejam, mas assim só para contextualizar, fala sobre uma jovem assombrada e deprimida pela recente morte da irmã, que conhece um rapaz que a tentar tirar daquela depressão com viagens a lugares simples, mas fantásticos. Ele tem uma energia inesgotável e uma alegria e um entusiasmo contagiantes. Acabam por se apaixonar e é então que ela descobre que afinal, também ele é cheio de fantasmas, de momentos sombrios, com os quais tenta a todo custo lidar sozinho e escondido do mundo. Quem me conhece percebe os motivos óbvios pelos quais eu fiquei apaixonada por este filme.


Todos nós temos sombras e fantasmas. Uns têm 50, outros têm 1000 e outros uma vida inteira deles. O que é comum a todos os que vivemos com muitas sombras, é que nos tornamos mestres na arte da fuga, da representação, da ilusão e da mentira. Mentimos a toda a gente sobre o nosso verdadeiro estado interno, levamos toda a gente a pensar que estamos fantásticos, maravilhosos e cheios de energia, usamos todas as estratégias que conhecemos para nos distrair e abstrair das nossas trevas e quando não aguentamos mais a representação, fugimos do mundo por uns tempos para os nossos esconderijos secretos. Alguns têm uma, no máximo duas pessoas, a quem contam parte da realidade que estão a viver e com quem mantêm contacto, outros isolam-se completamente durante um período de tempo.


Nunca nenhum de nós vai conseguir explicar porque é que isso acontece. Ansiedade, controlo, mentes demasiado ativas, muitas emoções reprimidas, que regra geral se resumem na típica resposta "estou cansado". Desde cedo aprendemos que poucas pessoas conseguem lidar com as nossas trevas e que muitas vezes somos rotulados como os fracos, os complicados, os assombrados, os que exageram tudo e é precisamente quando nos cansamos de ouvir isso que acabamos por desenvolver as nossas estratégias de fuga para o nosso lugar seguro. Sim, de alguma forma nós aprendemos a viver confortáveis no meio do Inferno. Há uma espécie de paz e uma sensação de estar em casa no meio do caos. Por isso, quando assistimos aos dramas menores de outras pessoas, por vezes acabamos por relativizar e até dar um ar um bocadinho desligado e superficial, mas não é por mal, nem é verdade. É porque para nós, com todo o respeito pela pessoa que temos à frente, na maioria das vezes, aquilo é o nosso prato do dia, um passeio pelo parque.


O mais engraçado é que nem sempre é assim. Nós temos mesmo picos em que somos os reis da festa, os impulsionadores, os destabilizadores (no bom sentido), os que têm as ideias mais apelativas, os que têm o sentido de humor mais apurado. E nem sempre isso é uma representação ou uma fuga. O nosso mundo interno é tão grande que há uma imensidão de coisas sempre a acontecerem nas nossas cabeças e nos nossos corações. Ás vezes sentimo-nos mesmo bem e estamos mesmo com imensa energia. Também é comum sermos muito atentos e por isso valorizarmos muito as pequenas coisas, os pequenos prazeres da vida e as coisas bonitas que temos e que nos acontecem. Gostamos muito do que é simples porque estamos habituados a viver tudo o que não é.


Muitas vezes dizem que nós vivemos nos extremos e de facto ao ver o filme é essa a ideia com que eu fico do Finch (o personagem principal). Ao vê-lo talvez compreenda melhor o que é a perspetiva de quem nos vê de fora, mas a realidade é que nós não vivemos em extremos. Para nós a oscilação não acontece assim tanto. Os ansiosos são sempre ansiosos. Os deprimidos são sempre deprimidos. Os controladores, são sempre controladores. Os sombrios são sempre sombrios. O que muda é a intensidade com que essas forças se manifestam dentro de nós consoante as fases de vida e os desafios que se nos apresentem. E, ao contrário de outras pessoas, nós temos uma caraterística muito chata que é o não termos vindo com o botão do "atirar para debaixo do tapete" a funcionar muito bem. "Ah esta emoção é chata, vou fingir que não está aqui e vou distrair-me com qualquer coisa!". Não dááááá!!! Fica ali a moer os miolos até lhe darmos atenção e até ela quase nos consumir o ar todo que temos para respirar. "Ah estou preocupada com isto, mas vou fingir que nem é um problema e nem existe". Não dáááááá!!! Nós não conseguimos desligar. E enquanto estamos no trabalho, no jantar com os amigos, no café, nas compras no supermercado, a dormir, estamos com isto a correr em plano de fundo e a drenar-nos energia vital. Juntando á equação a energia que gastamos a esconder, a iludir, a fingir (para os outros) que nem está ali, nem existe, temos momentos em que ficamos completamente esgotados. Daí o "estou cansado"!


Mas até aqui tudo bem. O problema é que isto ás vezes fica mesmo intenso. A sério, por favor vejam o filme para perceberem o que estou a dizer. O facto de aprendermos a viver com isto, não significa que conseguimos sempre sobreviver a isto. Quando morreu o ator, o Pedro Lima (claro que tive que ir pesquisar porque não sabia o nome, mas lembro-me bem da história), toda a gente publicava coisas, falavam sobre o assunto e diziam para quando as pessoas estivessem mal pedirem ajuda e coiso e tal. Pronto. Foi bonito. Gostei de ver as publicações. Gostei de ver a sensibilização. Mas lembram-se que nem a própria mulher que vivia com ele conseguiu perceber o estado em que ele estava para se querer matar?! É isto! Sensibilização é bonita mas temos todos que fazer um bocadinho mais do que isto. Temos que fazer mais do que "Epah se estás mal devias mesmo procurar ajuda...mas a minha não, outra!". E temos mesmo que deixar de olhar para as pessoas só pela nossa perspetiva, a de quem somos, e passar a olhar para elas por o que elas são, por quem elas são. E disponibilizar um abraço, disponibilizar uma companhia silenciosa, disponibilizar tempo para ouvir, para uma mensagem ou um telefonema. A maioria de nós não procura soluções. Não precisamos que ninguém nos diga para fazer assim ou assado. Procuramos um lugar seguro! Nos picos mais difíceis, quando a coisa fica mesmo intensa e sufocante, nós nem conseguimos organizar as ideias para conseguir falar sobre elas, por isso não vão estar a levar com o amigo ou familiar chato a debitar os dramas da vida. Vão só estar ali para ele.


Então, por favor... Por favor vejam este filme. E vejam a entrega que há aos outros mesmo em períodos de sofrimento. E vejam as tentativas desesperadas para se agarrar á vida. E vejam a intensidade que é a crise de uma pessoa que aprendeu a viver no Inferno. Escrevi isto como nós porque eu sou uma das que aprendeu a viver no Inferno e levei muitos, muitos anos para o admitir. Na verdade, quanto mais o fui admitindo mais me fui libertando dele, mas isso é conversa para outra altura (e talvez para outro blog). O que importa é que não sei isto porque uma amiga me contou ou porque li a entrevista da mulher do Pedro Lima. Infelizmente parece que as coisas só parecem reais e importantes quando são capas de jornais ou quando nos toca a alguém próximo e por isso decidi escrever sobre este tema. Para perceberem que existe, é real e que há mesmo pessoas que conhecem que passam por isto de forma intensa, violenta e agressiva para elas mesmas e que o escondem de vocês. E para perceberem que nestes casos, a capacidade de camuflagem é tão grande que pode acontecer que quando perceberem a dimensão da coisa já seja tarde demais.


Quanto aos "nós"... Partilhem o que sentem, peçam ajuda, falem. Não precisam de se esconder. No fim, não há nenhum Ser Humano normal porque ninguém sabe o que é ser normal. E aquele que não tiver telhados de vidro que atire a primeira pedra. Vivemos com um ideal de equilíbrio e de perfeição que são uma utopia distorcida. Vivemos a comparar-nos e a ser comparados com outros imperfeitos, anormais e desequilibrados. Regras e valores cada um tem os seus, equilíbrios e desequilíbrios também. Então, por favor, não se escondam.


O filme está disponível na Netflix. Ide aproveitar o fim-de-semana para prestar atenção a coisas tão ou mais importantes que o COVID, especialmente numa altura em que por causa dele os contactos sociais e familiares estão condicionados e em que as pessoas estão cada vez mais isoladas, sozinhas e escondidas atrás de ecrãs de telemóveis, tablets e computadores. Depois contem-me o que acharam!


imagem de www.slashflim.com

0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page