In box...
- Marina Duque
- 14 de jul. de 2019
- 6 min de leitura
Já falei por aqui uma vez ou outra de um conceito que aprendi há uns anos e que a certa altura se transformou numa dor de cabeça para mim: as caixas da sociedade.
Como diria Locke quando nascemos somos uma tábua rasa. Nascemos livres de conceitos e preconceitos, nascemos sem ideia do que somos ou do que queremos ser. À medida que vamos crescendo é que a coisa começa a mudar de figura. Quer queiramos, quer não, somos condicionados pela nossa herança familiar e pela sociedade em que nascemos. A educação que recebemos baseia-se não só nas vivências dos nossos pais, mas também nas dos nossos avós, bisavós, tetravós, tios, padrinhos, nas experiências que cada um viveu ao longo do tempo, por vezes misturando várias culturas e ainda respondendo às normas sociais que vigoram no nosso tempo. Ora pois que é muita coisa para uma criatura pequenina, mas como temos tempo, que os miúdos também demoram a fazerem-se homens e mulheres, aqui vai disto.
Acontece que crescemos assim, a ser enfiados em caixas pré-existentes, construídas por muitos, de forma a que em cada uma delas caibam outros tantos, para que ninguém se destoe dos demais. Afinal de contas uma coisa é promover a liberdade de expressão e a criatividade da criancinha, outra coisa é ter que lidar com o facto de o nosso filho ser completamente diferente de todos os outros. Deus nos livre de termos que explicar aos outros pais porque é que o nosso filho é diferente, enquanto eles olham de lado para nós como fossemos uma cambada de atrasados mentais.
Bem, acontece que a criança um dia transforma-se em adulto. Independentemente de se o adulto é mais ou menos escolarizado (embora o ideal seja concluir o doutoramento numa porra qualquer), o que se espera deste adulto é que tenha um trabalho certinho (pode ser merdoso e infeliz, mas como até é limpinho...), arranje um bom casório, tenha uns putos engraçados e, se for homem, deve prover uma boa vida à sua família, se for mulher, além de um trabalhito jeitoso, também deve dominar conhecimentos na área da cozinha e na área das limpezas, nomeadamente conhecer o melhor multiusos para limpeza de superfícies e o melhor gel para tirar nódoas da roupa dos putos e do marido. Nódoas dela não é preciso que anda sempre impecável! Ora, competências adquiridas, vida construída, vamos à prática: acordar às 7h00 da manhã, preparam-se os adultos, acordam-se os miúdos, toca a vestir, toca a comer, preparam-se as lancheiras, tudo para dentro dos carros, putos para a escola, adultos para os trabalhos. 8 ou 9 horas depois os adultos saem dos trabalhos, um passa pelo supermercado para apanhar a manteiga que acabou de manhã, o outro apanha os miúdos nas escolas/creches/amas, vai tudo para casa. Banhos, trabalhos de casa, jantares, miúdos para a cama e são 10h00 da noite. Vê-se um pedacinho de televisão, adormece-se no sofá, arrasta-se para a cama que amanhã tem de se repetir tudo outra vez.
A vantagem de ter quase 33 anos e não ser casada, nem ter filhos, é que já vi isto repetir-se assim dezenas de vezes. E embora até descreva isto com algum humor, não tenho nada contra. Sou completamente a favor da Felicidade do Ser Humano e se este é o modelo que faz as pessoas felizes, a minha teoria é que não devem desistir dele. Acredito verdadeiramente que devemos ser aquilo que quisermos ser, que devemos levar a nossa vida de acordo com aquilo que nos faz sentir felizes e realizados, mas isto é o que me leva à questão seguinte. Precisamente por não ter adoptado este modelo na minha vida, por muitas vezes senti na pele e de forma dura, a crítica e até a imposição dos modelos pré-existentes à minha inexistência de modelo a seguir. Sabem aquela história do "Então mas nunca mais casas?", "Então quando é que assentas?", "E filhos? Já está na altura! Olha que não és nova para sempre!". Pior ainda é quando esta imposição e crítica ainda vem com aquele ar de superioridade de quem é infeliz e vive com a constante sensação de vazio, de que lhe falta alguma coisa, mas não tem coragem para assumir a sua verdade e, para amenizar a sua culpa, tenta impor aos outros aquilo que ao próprio não lhe serve.
Talvez por ter tido pais que me deram sempre alguma liberdade para Ser, também tive sempre a oportunidade de traçar o meu próprio caminho. Também fiz um curso superior e também arranjei um trabalho jeitosinho na minha área de estudos (valha-nos Deus, quanta sorte!), mas sempre tive dificuldade em encontrar uma caixa onde eu conseguisse caber. Precisamente porque acredito na Felicidade do Ser Humano e especialmente porque acredito no Ser Humano, também acredito que preciso de tempo para ser Humana e viver esta experiência da Humanidade. Tenho dificuldade em conceber uma vida onde não tenho tempo para mim, para fazer aquilo que gosto, que me entusiasma, que me realiza e que me dá prazer. Tenho dificuldade em conceber uma vida onde não faço mais do que desempenhar papeis (profissional, mãe, dona de casa, filha, etc.) e não tenho tempo para ser quem eu verdadeiramente sou antes de ser esses papeis todos. Tenho dificuldade em conceber uma vida de sobrevivência, onde se vive para trabalhar (em vez de se trabalhar para viver), onde tenho filhos para eles passarem mais tempo na creche ou na escola do que comigo, onde os meus dias giram à volta das responsabilidades/obrigações/rotinas e onde eu sou uma espécie de clone. Para mim Ser Humana não é viver num looping de dias pretos e brancos, onde cada dia é igual ao seguinte. Ser Humana é experimentar a vida, é ter experiências diferentes que nos alargam os horizontes, expandem o coração e enriquecem a existência. Ser Humana é viver em vez de sobreviver.
Felizmente ou infelizmente, na minha geração conheço mais pessoas com o mesmo dilema que o meu, que têm dificuldade em caber nas caixas modelo e por isso, a dada altura, a sensação que temos é a de que não há lugar para nós no mundo. Levei muito tempo até conseguir perceber e integrar verdadeiramente dentro de mim que o facto de pensar de forma diferente, de ver a vida de forma diferente e de querer viver de forma diferente, não faz de mim (nem dos outros como eu) uma anormal, deslocada e desfasada do mundo. A maior dificuldade que nós atravessamos depois de conseguirmos aceitar que temos tanto direito de viver como nós queremos quanto os outros todos, é que precisamos criar a nossa própria caixa, à nossa medida e de uma forma completamente nova. Basicamente precisamos criar uma caixa que será diferente de todas as outras caixas. Isto não tem nada de fácil. Isto exige ousadia, coragem, criatividade e muita fé porque aqui não existem modelos a seguir. Exige que façamos um reset em muitas das crenças e padrões que adquirimos ao longo do tempo e que façamos o trabalho de descobrir exactamente quem nós somos, o que é que nos motiva e que marca é que queremos e podemos deixar no mundo. Implica que se inicie uma expedição ao centro do nosso Ser, para então poder manifestar quem somos de dentro para fora, em vez de tentarmos transformar quem somos à imagem do que está lá fora. Isto exige que se enfrente o mundo e que se assuma perante ele a diferença, sabendo de antemão que vamos enfrentar a crítica e o julgamento e que vamos passar por anormais e imaturos que não fazem ideia do que querem da vida.
Confesso que este é um processo que para mim ainda é relativamente novo e que não o domino de todo, mas começo a perceber que é um processo para a vida toda. Acredito que a minha caixa é algo que eu vou construindo ao longo da vida, com a experiência que vou adquirindo ao longo do tempo e através das ferramentas que vou encontrando no caminho que vou fazendo dentro de mim. Na verdade, aos olhos do mundo, é bastante provável que eu vá ser sempre uma dissidente, imatura e sonhadora, mas isso não é necessariamente uma coisa má. Posso ter poucas certezas na vida e realmente vivê-la como uma experiência, usando o velho modelo da tentativa e erro, mas uma das poucas coisas que eu sei é que não quero andar pelo mundo como uma fotocópia a preto e branco. Tenho a certeza que quero que a minha caixa tenha todas as cores do arco-íris, que seja uma caixa alegre, cheia de aventuras e de magia, onde não exista julgamento, mas onde haja sempre lugar para a verdade, para a essência, para as pessoas de bem, para o amor e para aquele bocadinho de loucura que faz os milagres acontecerem. Na minha caixa, quero que caibam todos os sonhos do mundo, mas quero que especialmente caibam os meus sonhos e a coragem para nunca desistir de quem eu sou. ✩

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