Fantasmas
- Marina Duque
- 3 de jul. de 2019
- 5 min de leitura
Quando era pequenita ganhei medo do escuro. Nunca acreditei em monstros debaixo da cama, mas acreditava convictamente que durante a noite haviam fantasmas prontos para sair do meu armário, mesmo ao lado da minha cama. Não era um medo concreto. Na verdade eu nunca achei que os fantasmas me iam fazer mal, mas eram criaturas desconhecidas e misteriosas e em qualquer idade nós tendemos a temer o que desconhecemos. Claro que à medida que fui crescendo, os adultos foram-me dizendo que os fantasmas não existiam e que os armários são lugares perfeitamente seguros de noite e de dia. Não sei bem se eles me mentiram ou se não sabiam mesmo, mas o que acabei por descobrir por mim é que eles estavam enganados e os fantasmas existem mesmo. Não vivem em armários, nem debaixo de cama, mas vivem num lugar muito mais próximo e secreto: dentro de nós!
Todos nós ao longo da vida sofremos feridas profundas. As feridas na pele, quando não são tratadas, infectam. As feridas emocionais, quando são enfiadas debaixo do tapete da nossa consciência sem serem cuidadas, criam um buraco na nossa alma e dele nasce um fantasma. Sim, os nossos fantasmas não são mais do que retalhos da nossa alma, que vão ficando esquecidos e abandonados num lugar qualquer recôndito da nossa existência. Não gostamos de sofrer e por vezes a dor é tão profunda que os nossos mecanismos de sobrevivência são activados e acabamos por, por instinto, atirar com aquilo que nos fere para onde o sol não brilha e por lá fica, à espera dos melhores dias que virão e que sejamos capazes de reunir forças para lidar com a situação. O que acaba por acontecer é que aparentemente a coisa passa e, se já passou, não fazemos muita questão de lá voltar. O problema é que deixar de lado por um tempo pode ajudar-nos a sobreviver, mas nunca mais voltar lá vai deixar-nos eternamente em modo de sobrevivência. A dor, a comichão, o incómodo e o desconforto fazem parte da cura, mas nós temos medo. Pensamos que voltar a esse lugar pode significar voltar ao mesmo nível de dor e de angústia que vivemos anteriormente e, se naquele momento a coisa até já passou, mais vale deixar como está. É como se costuma dizer "quanto mais se mexe na m...., pior ela cheira".
Mas como eu dizia, assim nascem os fantasmas e assim se acumulam. Basicamente através da quantidade de m.... com que não queremos lidar. São os sonhos que ficaram por realizar, as expectativas que se goraram, os amores que ficaram pelo caminho, os sentimento de rejeição e de abandono, as palavras duras que nos foram atiradas, os medos de não ter ou de não ser, as injustiças, as falsas verdades, os juízos de valor, os desgostos e os desamores. São o que nos infligiram e o que nos auto-infligimos. São o que fizemos, o que não fizemos e o que permitimos que nos fizessem. Tudo isto quando atirado para as sombras de quem somos, transforma a nossa alma numa longa capa atacada pela traça e dá pano para várias mantas de retalhos.
Os nossos fantasmas são a parte de nós que foi atirada para o quarto escuro da nossa alma e que por lá permaneceu. Quando se decide entrar nesse quarto a cena pode ser assustadora, a verdadeira visão do Inferno. Pode doer, pode queimar, pode quase sufocar. Entrar nesse quarto é enfrentar as coisas mais dolorosas da nossa vida, mas é o início do nosso processo de cura. Durante muito tempo eu acreditava que uma pessoa saudável e equilibrada não tinha feridas e, por conseguinte, não tinha fantasmas. Se os fantasmas existiam essa pessoa devia ser muito atormentada. Ora pois que descobri que estava redondamente enganada. Descobri que nem todas as feridas são para serem curadas. Algumas são nossas, muito nossas e fazem parte da história da nossa vida e de quem nós somos. Em alguns casos, é possível voltar atrás e reescrever a história, noutros casos, a única solução é fazer as pazes com a vida, assumir a nossa responsabilidade por aquilo que trazemos para a ela e transformar o que em tempos foi uma fraqueza numa força.
Quando decidi entrar no quarto escuro onde os meus fantasmas habitavam e ganhei coragem para passar lá um bom bocado, descobri que muitos dos fantasmas que lá estavam acabavam por ir embora e outros simplesmente ficavam. Ás vezes quando um ia embora, aparecia outro novo que tomava o seu lugar. Muitos deles tornaram-se meus amigos e começaram a fazer-me companhia nas noites em que a lua não brilha. Habituei-me a sentar-me com eles no escuro e a ter longas conversas sobre as suas experiências. Ás vezes até acabava por adormecer por lá enquanto eles me contavam histórias do lugar de onde eles vêm. Passei a conhecê-los melhor, a compreendê-los melhor e aprendi a amá-los. Aprendi que tudo o que eles precisam é de serem aceites, amados e acolhidos à luz da nossa consciência. Em essência eles são só medo, por isso também estão assustados e precisam sentir-se seguros. Não precisei de os afastar, nem de fazer com que eles desaparecessem. Hoje vivo muito bem com muitos deles, continuo a passar imenso tempo com eles e aceito-os como parte de tudo o que eu sou. Sim, eles representam as partes mais difíceis da minha vida, mas essas também fazem parte de mim, da minha história e sem ela, eu não seria o que sou hoje.
Este é o verdadeiro processo de cura! Nem todas as feridas saram e nem todos os fantasmas desaparecem, nós apenas mudamos a consciência com que olhamos para eles. Ganhamos consciência de que as dores e as perdas são tão importantes para o nosso crescimento quanto as conquistas e os ganhos. Deixamos de as rejeitar e de nos sentirmos amargurados com elas. Percebemos que são como as dores do parto: aquelas que têm que acontecer para que o inevitável e desejado renascimento se dê nas nossas vidas. São a mão divina a operar os seus milagres e a indicar-nos o que precisa de ser transformado para que o nosso caminho se alinhe e o nosso propósito se cumpra. A dança entre a luz e a sombra é a oscilação necessária para que se alcance o equilíbrio, é o que define as cores da nossa alma e o que nos conduz à versão mais autêntica de quem somos. Fugirmos dos quartos escuros da nossa existência é rejeitarmos uma parte de nós e assim, vivermos atormentados pelo vazio, pela insuficiência e pela carência de Ser.
Hoje já não tenho medo da escuridão, nem dos fantasmas que habitam dentro de mim. Hoje posso dormir com as portas do armário abertas e com as portas de todos os quartos da minha existência escancaradas. Hoje eu sou a criança que compreende que a luz e a escuridão são apenas dois lados da mesma moeda. Hoje eu adormeço com os meus fantasmas com um sorriso de felicidade estampado no rosto. ✩

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