Era da Contenção
- Marina Duque
- 17 de fev. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 7 de abr. de 2020
Vivemos na Era da Contenção. Contemos a alegria, os sorrisos, as lágrimas e a dor. Contemos os sonhos e contemos as emoções. Contemos as manifestações de amor, de afecto e de carinho. Contemos o medo, a verdade, a autenticidade e a força. Contemos as gargalhadas. Contemos o prazer. Contemos o risco. Contemo-nos até não sobrar nada do que nos define. Contemo-nos até que não haja um pingo de espontaneidade em nós. Veneramos a disciplina, o rigor, o foco, o controlo e tudo mais que nos mantenha contidos, aprisionados dentro de nós. Fugimos à exposição porque começámos a acreditar que ela nos debilita, nos torna vulneráveis. E começámos a acreditar que mostrar vulnerabilidade é uma fraqueza e não uma força.
Somos os filhos de um mundo que nos castra, que nos critica, que nos penaliza cada vez que violamos a regra. Somos os animais amestrados de um circo de tradicionalismos e boas maneiras, domados pelos medos dos senhores que nunca fizeram mais do que ser iguais a todos os outros, no lugar de serem iguais a si mesmos. Somos os filhos da cobardia, do preconceito, da vergonha alheia e da supressão de identidades. Tantas revoluções liberais onde estados se proclamaram independentes, mas nenhuma delas nos libertou verdadeiramente. Seguimos um guião que nos confina ás paredes da nossa mente, onde nos esgotamos em estratégias para todos os dias continuarmos a ser os prisioneiros exemplares que sofrem e se debatem em silêncio todas as noites.
E depois há uns quantos de nós a quem chamam de loucos, dissidentes, rebeldes, porque escolhemos ser livres, porque escolhemos não viver prisioneiros de outros dentro de nós mesmos. Escolhemos a alegria, a felicidade e a realização. Escolhemos deixar a nossa marca no mundo e se não pudermos deixar mais nada, que deixemos um rasto de sorrisos e corações cheios de amor. Somos os que não temos medo de chorar em público, de dizer o quanto amamos ou o quanto nos magoaram. Somos os que não nos inibimos de valorizar as qualidades únicas daqueles que nos são queridos e não nos cansamos de lhes mostrar o quão especiais são. O nosso prazer vem das coisas simples e é nelas que renovamos o nosso entusiasmo. Preservamos a ingenuidade da criança que fomos e é ela que nos permite viver a nossa vontade, os nossos desejos, sem culpas e sem remorsos. Somos os que sabem que a vida não é para ser levada demasiado a sério e por isso rimos ás gargalhadas, gritamos até ficarmos roucos e dançamos até de manhã. Criamos o nosso futuro agora e reescrevemos o destino todos os dias. Sabemos fechar os punhos para lutar, mas preferimos abrir os braços para abraçar. Sabemos ser assertivos e dilacerantes com as nossas palavras, mas preferimos usar a nossa boca para beijar. Mantemos a humildade que descansa na memória de onde viemos, mas cultivamos a audácia de não nos permitirmos permanecer nos lugares comuns. Somos homens e mulheres de fé que acreditam em magia. Somos corajosos porque nos permitimos sentir medo. Somos luz porque nos permitimos vaguear pelas sombras. Somos Deuses porque nos permitimos viver os nossos Infernos. Somos os que melhor conhecem o preço da liberdade, porque somos os que um dia tiveram que pagar pela sua libertação.
Que se lixe a contenção e todos os que erguem o seu estandarte. Que se lixem os aprisionamentos existenciais. Que se lixem os dominados pelos pretextos, contextos e falsos moralismos. Que se lixem os que se deixam violar pelo medo e se mantêm na sombra de quem querem ser e do que querem viver. Que se lixem os falsos profetas e as falsas fortalezas. Que se lixem os que se deixam domar por fantasias de auto-controlo psicológico, os que ditam as regras de como todos devemos ser e nos deixam prisioneiros de um mundo onde não há lugar para a liberdade da criação. Tentam criar ordem e geram caos. Tentam fazer sentido e perdem-se em abismos de incoerência existencial. E assim tentam derrotar uma geração. E assim quase destroem uma geração. E assim exigem que toda uma geração se sinta nada, antes de se sentir alguém. Criam formigas trabalhadoras, ensinam que as emoções são tóxicas e os sentimentos venenosos. Retiram-nos a humanidade quando nos retiram a capacidade de sentir, de pensar por nós mesmos, de vivermos a nossa verdade. E no fim, apregoam a democracia. a liberdade de escolha, só para nos poder ostracizar no primeiro momento em que pisamos o risco da diferença. Somos os filhos de uma ditadura monocromática que nos confina ao preto ou branco, enquanto a nossa alma grita pelo arco-íris.
Antes que a noite se transforme em manhã, que o Olimpo se imponha, que os Deuses se revoltem e que nos seja devolvida a liberdade de sermos Humanos, sencientes, livres de percorrer o nosso caminho sem ódios, sem medos, sem críticas. Que nos seja devolvido o direito de rir, de chorar, de correr, de dançar e de nos entregarmos de corpo e alma aquilo que faz o nosso coração vibrar sem julgamento e sem contenção. Que não tentem mais amputar-nos. Que não tentem mais ostracizar-nos. Que não tentem mais pedir-nos que sejamos menos porque acham que estamos a ser mais. Que enquanto formos vivos, ninguém mais tente meter-nos dentro de um caixão.

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