Da Era da Contenção à Nova Terra.
- Marina Duque
- 7 de abr. de 2020
- 7 min de leitura
Escrevi "a Era da Contenção" poucas semanas antes de aparecer em Portugal o primeiro caso de COVID-19. Na altura escrevia sobre como nos aprisionávamos dentro de nós , como nos contínhamos, como nos controlávamos naquilo que nos era mais essencial e primitivo e como nos deixávamos regular por forças externas a nós. Escrevia ainda sobre os rebeldes, sobre os loucos e sobre a coragem que era necessária para ser qualquer um deles. Mal eu sabia que poucos dias depois, a Contenção viria a dar lugar a uma Pandemia Mundial.
De um dia para o outro todos estávamos a lidar com os nossos piores medos. Uns tinham medo de morrer, outros tinham medo de perder aqueles que amavam, outros sentiam a impotência de não poderem proteger ninguém, enquanto eu chorava porque me tinham retirado a permissão para abraçar. Refilava com a vida por ela me ter retirado a coisa que mais me fazia sentir humana. Eu queria lá saber se morria! O meu medo não era o da morte. O que mais me assustava era morrer desprovida de amor, de carinho e de abraços. Falamos tanto de morrer com dignidade, mas morrer desumanamente assustava-me ainda mais. Bem, mas não obstante os abraços, tínhamos que manter uma distância de dois metros e evitar cuspir-nos uns aos outros. Aquela brincadeira de quando éramos miúdos, de ver quem cuspia mais longe ganhou contornos de perigo nunca antes imagináveis e passámos a conter-nos ainda mais nos perdigotos. Mais contenção na fala. Mais contenção nos gestos. Mais contenção na proximidade. As bolhas pessoais cresceram e passámos a afastar-nos das pessoas que se aproximavam de nós como o diabo da cruz. Começámos a lavar as mãos até ficarem em ferida e, como se não bastasse não podermos tocar nos outros, a Direcção Geral de Saúde alertou-nos para que não tocássemos em nós próprios. Isto não era uma Pandemia, era um Pandemónio! De repente sair à rua obedecia a todo um novo conjunto de regras pessoais e sociais: desinfectar as mãos, manter a distância, controlar os perdigotos, lavar as mãos com água e sabão enquanto se cantam os "Parabéns" (ou a "Garagem da Vizinha"), tossir para o cotovelo, não beijar, não abraçar, desinfectar as mãos outra vez, não tocar nos olhos, boca ou nariz (para quem sofre de Rinite é um sonho), hidratar as mãos, ponderar se depois de hidratar as mãos não se devem desinfectar outra vez não vá a embalagem do creme estar contaminada... fora a preparação para sair! Lavar as mão com água e sabão, confirmar se o desinfectante está na mala, carregar no botão do elevador com um guardanapo, "Porra! Não trouxe o guardanapo!", volta a casa, pega no guardanapo, sai de casa pela segunda vez, tranca a porta (será que a chave está infectada?!), carrega no botão do elevador, não tocar na cara, abrir a porta do prédio, não tocar na cara, desinfectar as mãos, abrir a porta do carro, desinfectar as mãos, o volante do carro, tablier, rádio e a manete das mudanças, confirmar mentalmente os passos todos a ver se não escapou nenhum e finalmente 15 minutos de descanso até ao trabalho. Já vi pessoas a conduzir sozinhas dentro do carro com máscara e ainda não percebi bem a cena, mas cheira-me a um daqueles enigmas como o do papel higiénico, que só será desvendado daqui a muitos, muitos anos, num qualquer documentário do Discovery Channel.
As redes sociais ficaram extremamente aborrecidas. Incontáveis stories com bolos, panquecas e treinos físicos em casa. Foi engraçado porque fiquei a conhecer as salas, quartos e cozinhas da maioria dos meus amigos, mas as casas de banho ainda são um mistério, pelo que sugiro que a próxima modinha seja explicarem o que fizeram ao papel higiénico todo que desapareceu das prateleiras dos supermercados enquanto fazem stories nas casas de banho. Os desafios das redes sociais também atingiram o nível de pandemia e calamidade, mas foram compensados com as correntes de apoio, primeiro aos profissionais de saúde, depois aos senhores dos serviços essenciais, finalmente lá acabou por chegar, ainda que de forma tímida, à malta do social. De repente as pessoas tinham tempo livre e não faziam ideia do que fazer com ele. Contidas nas suas casas e perdigotos, começaram por rebentar com as entregas ao domicílio nas compras online, para pouco tempo depois se fartarem da brincadeira e irem comprar ovos a cada dois dias para terem desculpa para sair à rua. Aparentemente, apesar da quantidade de bolos e panquecas a circular por essa web fora, ao contrário do papel higiénico, os ovos não faltaram nos supermercados. Já a farinha parece que não teve a mesma sorte, mas a ordem cronológica deixa-me confusa. Não deviam desaparecer primeiro a farinha e os ovos e só depois, dependendo das coberturas e recheios, é que desaparecia o papel higiénico?!
Bem, enquanto isto, incapaz de responder a tantos desafios e sem tempo para me coçar, quanto mais para fazer panquecas, eu continuava a chorar a falta de abraços e começava a sentir severamente as saudades de muitos dos meus amigos. Sim, sou saudosista, mas as pessoas tinham-se afastado e só se socializava através do ecrã de um smartphone, tablet ou notebook. Estávamos privados de muitos daqueles que amávamos e tinham-nos convencido que essa era a única forma de os proteger. Pediam-nos que encontrássemos novas formas de amar e eu morria de medo que, no fim de tudo isto, se tivesse impregnado em nós a crença de que nos podemos amar sem demonstrações de carinho e afeto e a crença de que a única forma de amarmos os outros, fosse protegendo-os de nós mesmos. O mundo estava virado do avesso. Eu que sempre acreditei que qualquer forma de amor puro não podia conter em si qualquer sombra de maldade, via agora o meu tão querido e aclamado amor ser transformado em algo tóxico e virulento. Muitos se levantaram dizendo que era o tempo do amor-próprio, mas que raio de amor posso eu sentir se não posso sequer tocar na minha própria cara?! Pouco faltou para ter que manter uma distância de dois metros de mim mesma. Outros diziam que tínhamos que encontrar novas formas de demonstrar amor! Epah!!! A coisa mais primitiva da história da humanidade é abraçar e beijar. Peguem num bebé, enfiem-no num berço a dois metros de distância e encontrem uma forma nova de lhe enviar amor! Em menos de nada abraçávamo-nos à distância, beijávamo-nos com o olhar e acariciávamos com o coração, mas não era suficiente. A taxa de mortalidade do vírus era mínima comparada à taxa de desumanidade que se vivia por esta altura.
Parece-me que esta pandemia levou a forma como já vivíamos ao extremo, colocando em evidência os exageros que já cometíamos. Os que lutavam por serem independentes, viram-se obrigados a sobreviver sozinhos. Os que se escondiam do mundo ficaram impossibilitados de sair casa. Os que eram inseguros entraram em pânico com a instabilidade. Os controladores e manipuladores foram controlados e manipulados. Os dependentes das redes sociais, ficaram sem outra forma de contacto com o exterior. Os incapazes de assumir a responsabilidade pelas suas próprias vidas, cheios de medo de morrer porque ninguém os viria salvar. E depois haviam os loucos. Aqueles cujo único medo se prendia com a manutenção da humanidade. Aqueles que sabiam que a mudança de consciência era necessária para o bem do planeta, mas que os afligia a forma como tudo isto estava a ser conduzido. Que mundo pode ficar melhor se o amor continuar a ser contido? Que mundo pode ficar melhor se continuamos a seguir cegamente o rebanho, incapazes de pensar por nós próprios? Que mundo vamos criar se não pudermos dar asas à criatividade e a alguma dose de loucura e alegria? Que mundo pode ficar melhor se tudo o que cultivamos é medo, pânico, horror e drama?! E não, não estou a dizer que não devemos seguir as recomendações da D.G.S. e da O.M.S.. Estou a dizer que podemos lavar as mãos com alegria. Que podemos sair à rua para ir trabalhar, despejar o lixo ou comprar ovos sem ter um surto nervoso e dizer bom dia ás pessoas por quem passamos. Estou a dizer que podemos manter a sanidade mental mesmo durante uma pandemia. E não... não estou em negação! Sei perfeitamente quais são os riscos e os cuidados que tenho que ter, mas também sei que morro mais depressa de falta de amor e de humanidade do que infectada por um vírus. Sei que o mundo melhor que quero ver nascer, não passa por fazer yoga, panquecas e bolos que partilho nas redes sociais, mas sim por mesas cheias de pessoas que se amam, que se preocupam umas com as outras e que se abraçam sem medo de dizer o quanto se amam. Passa por pessoas que têm um sentido de comunidade e de civilização que lhes permite dizer bom dia ao empregado do supermercado ou ao varredor da rua. Que têm a coragem de sair de casa todos os dias para servir os que precisam ser protegidos. Por uma vizinhança que se disponibiliza para ajudar os mais fragilizados ou isolados. Por pessoas que, independentemente do caos criado à sua volta, conseguem rir, brincar, dançar, ter prazer e pensarem por si, assumindo a responsabilidade pelas suas vidas, enquanto espalham alegria e esperança por onde passam. Ninguém está livre de que lhe aconteça o pior, seja com uma infecção, seja a atravessar uma passadeira, mas todos estão livres para viver enquanto não estiverem mortos e todos continuamos a ter livre-arbítrio para escolher que marca queremos deixar no mundo.
Sabem, quando um dia mais tarde contar aos meus filhos que em 2020 uma pandemia assolou o mundo, espero não ter que lhes contar que foi o medo que venceu e que a Era da Contenção deu origem à Era do Desamor e das Trevas. Espero, que daqui a muitos anos, a história seja bem diferente e que conte sobre como a Humanidade se redescobriu e reinventou, como aprendeu a dar valor àquilo que sempre teve como garantido, a agir de forma mais altruísta e comunitária. Espero poder contar-lhes sobre como nos tornámos mais Humanos, mais felizes, mais alegres. Como passámos a viver o amor de uma forma mais pura, menos crítica, menos julgadora e como todos nós aprendemos a não nos conter, porque no fim, nunca sabemos quando será a última vez que vamos ver, abraçar, rir, chorar ou dançar com alguém. Nada é verdadeiramente nosso... A não ser a escolha responsável e consciente de sermos os Humanos que criaram a Nova Terra. Como é que essa Nova Terra será, é o que nos cabe decidir agora, não em razão, mas em consciência e acção.

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